O título é um plágio de um colega meu, também jornalista, a quem peço que me perdoe pelo “furto” da autoria.
A matéria em questão foi a respeito de uma tragédia aérea ocorrida em Redenção, sul do Pará, no ano de 1995, exatamente em um dia 23 de outubro, quando se comemora o Dia do Aviador. Várias pessoas morreram, incluindo o jornalista Roberto Braga, então diretor de publicidade da TV Carajás, afiliada ao SBT. Na época, era eu o diretor de jornalismo dessa emissora.
O voo, em um monomotor, era justamente em comemoração pelo Dia do Aviador, cuja Associação de Pilotos de Aeronaves de Redenção, todos os anos reunia seus associados e familiares para confraternizar pela data. Como forma de incrementar ainda mais o festejo, foi realizado um bingo e ao ganhador, um mecânico, coube como prêmio o privilégio de um passeio de avião, em companhia da família. No caso, sua esposa e duas filhas, de 10 e 12 anos, respectivamente. Apenas a de 12 anos sobreviveu. O restante da família, assim como os demais ocupantes, morreram todos. Incluindo piloto e co-piloto.
O que seria apenas um sobrevoo festivo, acabou redundando em lamentável tragédia.
Quis a mão caprichosa do destino, que eu e meu cinegrafista não estivéssemos nesse voo. Não lembro o motivo, mas chegamos atrasados no aeroporto. O convite era para fazer o registro de toda a animação da família contemplada, além dos demais convidados. Para os adolescentes, era a primeira experiência no ar. Catastrófica experiência.
Outros também foram convidados para o sobrevoo, incluindo Roberto Braga.
Toda a festa se transformou em lágrimas de luto. A cidade entrou em comoção. Narrar o fato em reportagens, era dever de ofício. Esse nosso confrade, usando de toda a sensibilidade, deu esse título: “A Matéria que Não Gostaria de Escrever”. Não sei se pela perda do colega de profissão, ou se pelo todo.
Fiz todo esse preâmbulo, para poder chegar aonde queria.
Milito no jornalismo desde muito jovem. Comecei como “foca” ainda na adolescência, com preferência pela crônica policial, embora atue também nas outras áreas da comunicação. No rádio, me inspirei muito no saudoso e icônico repórter policial Paulo Ronaldo. Foi meu “mestre à distância”.
Já vi e já escrevi sobe muitas tragédias. Tantas que nem lembro quantas. Algumas revestidas de tanta crueldade, que levam a reflexão sobre se foram mesmo cometidas por algum ser humano.
Assassinatos, estupros, acidentes, incêndios, invasões, desocupações, mortes de sem-terra e mortes de policiais; suicídios, afogamentos; enfim. Dá para reunir em um livro, sendo esse um de meus ainda projetos.
Sim, já vi um mar de sangue derramado; já presenciei enxurradas, das lágrimas das muitas famílias que ficaram enlutadas.
E agora, estou vivenciando na pele a mesma história, tema e enredo de muitas outras, já escritas ao longo de muitos anos.
A “reportagem que não gostaria de escrever”, é sobre minha própria filha, cuja vida foi tirada pelas mãos de um algoz, a quem chamava de “amor”, e “vida”.
Estranha forma de amar, cuja prova foi um nocaute fatal na nuca. Minha filhinha experimentou a sua última “queda” na vida, das muitas outras pela qual já tinha tropeçado. Dessa, já se levantou pelas mãos de terceiros. Para nunca mais voltar.
É com lágrimas à jorrar, coração entorpecido, alma em frangalhos, espírito em devaneios, que tento imortalizar pela escrita, o que não consigo expressar em palavras. O nó na garganta, só permite o eco dos soluços.
Minha filha foi nocauteada, sem o mínimo reflexo de defesa. Soco pelas costas, na nuca, cuja força provocou traumatismo craniano seguido de hemorragia interna.
Soco de covardia, desferido por um crápula, que não passa de um germe que rasteja pelas sarjetas.
Nem uma gota de sangue derramada.
Nem um ai; nem um grito por socorro.
Apenas o último suspiro.
O último beijo que veio foi de um anônimo, que ainda tentou o “respiração boca a boca”.
Em vão.
O último suspiro já havia se esvaído.
O que restava agora, era apenas um corpo inerte, atirado sobre um chão frio, tão pisado e repisado pela miséria humana.
O que resta agora, filha minha, é somente essa dor danada, que dilacera, que corta tudo por dentro, que corrói minh’alma, que me faz perder a fé, que me faz tão pequeno, que me faz um quase nada, um quase ninguém.
Fala, filha minha, onde foi que te perdi? Quando?
Quando deixei de segurar tuas mãos?
Onde foi que errei?
Me permite, amor meu, que possa contemplar, sempre, o teu sorriso franco;
Tua alegria de menina, que a todos contagiava.
Deixa levar na memória, o teu jeito meigo e descontraído de viver.
Sim, amavas a vida
E semeavas amor ao teu redor,
Muitas das vezes, em campos não muito férteis;
Mas amavas, com tanta intensidade,
Que até os animais, sentiam a força dessa luz, que transbordava de tua áurea.
Mas não o animal,
Esse ser selvagem, ignóbio,
Que te nocauteou por trás,
E matou a todos nós.
Te amo, eternamente e saudosamente te amo,
Prisciane, querida filha minha.
Esta é a crônica, que nunca gostaria de ter escrito.
Por Nilson Santos