Ainda que o remake de “Vale tudo’’, estreia da última semana na Globo, fosse visto por cem pessoas, já valeria a pena. Um alívio saber que vai chegar a mais, muito mais gente. É uma história que continua urgente, apesar de a nova versão vir a público 37 anos após a original. E foi ainda no primeiro capítulo, num diálogo entre a inescrupulosa Maria de Fátima (Bella Campos) e seu avô, o corretíssimo Salvador (Antonio Pitanga), que a questão central da novela foi posta: vale a pena ser honesto no Brasil? Na cena, a jovem pede a ele, funcionário da Alfândega, que faça vista grossa em relação a equipamentos fotográficos que César (Cauã Reymond) quer trazer do Paraguai. No meio da conversa repleta de referências à cultura da corrupção enraizada na sociedade brasileira, o senhor se nega veementemente a cometer tal ato e resume: “Caráter é aquilo que você faz e ninguém está vendo’’.
A moça vai confirmar durante a novela toda ser uma tremenda de uma mau-caráter. Mas o folhetim vem para dar uma sacolejada e abrir os olhos de todos nós, inclusive os íntegros. Vez por outra, em meio a tanta injustiça de todos os tipos e de uma vida de trabalho e retidão nem sempre recompensada dignamente, parece tentador sucumbir a pequenas infrações. Afinal, meu pequeno desvio não vai causar um grande mal perto do que fazem por aí. O que tem de errado se eu violar essa besteirinha aqui?
Dá pena ver a mãe, Raquel (Taís Araujo), mulher batalhadora e decente como tantas brasileiras e brasileiros, defendendo Maria de Fátima após saber que foi golpeada pela própria herdeira. Herdeira do quê? Já que eles são apenas uma família humilde “com uma casinha simples num fim de mundo’’, como bradou a infeliz. Poderia ser herdeira da mais intrínseca das riquezas, que são os valores morais, mas isso é tudo o que a moça não absorveu. Incrédula, a heroína da trama insiste que a jovem não é bandida, foi ludibriada por uma má companhia, iludida pelo que vê na internet. Coitada… Esse é aquele caso da fruta que caiu longe do pé.
Pois se isso acontece até nos lares de gente boa, que batalha e transpira para dar sustento, estudo e um futuro melhor aos seus, imagine naqueles lares em que pequenas corrupções são relativizadas? Os políticos, afinal, roubam milhões e milhões desde que o mundo é mundo. Não causarei mal a ninguém sonegando um imposto aqui, pagando um suborninho para o guarda ali… Como se lisura fosse pesada na balança ou medida como vestimenta, nos tamanhos P, M, G ou GG. Ou como se a classe política não fosse formada por gente que sai toda daqui, do meio de nós.
Está só começando. Até o final dessa trama, quando descobriremos quem matou a vilã Odete Roitman (Deborah Bloch), que ainda nem deu as caras, vamos eventualmente ver Raquel como uma trouxa, vamos em alguns momentos imaginar que só dá pra chegar a algum lugar sendo como Maria de Fátima… Vale questionar tudo! E é aí que está o maior mérito dessa que é conhecida como a novela das novelas: fazer a gente voltar a cutucar a ferida que continua aberta, essa espécie de doença crônica que fere em maior ou menor grau a todos. Falta de moral não se mede com termômetro ou ameniza com analgésico. Ou a gente tem ou a gente não tem. Pra se dar bem na vida, definitivamente, não vale tudo.
Do Extra/Globo