Salve seus rins: como prevenir e controlar a doença renal crônica

Desintoxicar. A palavra virou moda entre influenciadores e profissionais de saúde, prontos para vender receitas e pílulas de origem e segurança duvidosas com promessas de remover quaisquer impurezas do corpo. Não caia nessa conversa!

Nosso organismo já dispõe de órgãos que realmente fazem esse serviço sem cobrar nada. Destaque para uma dupla dinâmica localizada logo acima da cintura, os rins.

Essas estruturas em formato de grãos de feijão são os responsáveis por filtrar as toxinas que chegam ao sangue e garantir que haja um equilíbrio químico entre os líquidos em circulação. Para dizer que não lhe falta trabalho, o par ainda exerce um papel crucial na regulação da pressão arterial. Haja expediente!

A cada minuto, os rins filtram cerca de 1,2 litro de sangue — praticamente um quarto do nosso estoque total. O caminho é longo e incessante. O sangue é bombeado pelo coração, parte da artéria aorta até chegar às artérias renais, que transportam o líquido aos rins.

Lá dentro, o sangue passa por diversas estruturas até as unidades básicas dos rins, os néfrons, que vão separando o joio do trigo. Os resíduos removidos do sangue (água e toxinas, em sua maioria) formam a urina, que é armazenada na bexiga e sai pela uretra.

A passagem é rápida, eficiente e feita sob alta pressão, até que o sangue siga seu caminho pelas veias renais e chegue à veia cava no abdômen, que o levará ao coração para ser bombeado e oxigenado novamente. Em uma hora, todo o nosso sangue cumpre esse trajeto 12 vezes.

Doença renal crônica

Mesmo com todo esse trabalho, os rins não recebem o merecido reconhecimento — tampouco o cuidado. Mas uma hora eles cobram! Estima-se que 850 milhões de pessoas — ou uma a cada dez em todo o mundo — terá algum grau de doença renal crônica ao longo da vida.

“É uma condição muito comum, em que os rins vão, lenta e progressivamente, perdendo a capacidade de filtrar o sangue”, resume José Andrade Moura Neto, presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN). “E esse quadro culmina em uma insuficiência renal irreversível, que terá impactos em todo o corpo no longo prazo.”

Causas e fatores de risco

O problema raramente aparece sozinho. Em geral, a doença renal é resultado de complicações de duas condições altamente prevalentes, o diabetes e a hipertensão. Quando elas não são controladas adequadamente, favorecem processos inflamatórios nos vasos sanguíneos de todo o corpo — inclusive nos rins, sobrecarregando os órgãos.

Segundo o relatório organizado pela Federação Internacional de Diabetes, indivíduos com esse diagnóstico correm um risco dez vezes maior de desenvolver problemas renais ao longo da vida — atualmente, calcula a entidade, 44% dos diabéticos já convivem com eles.

No Brasil, estima-se que 30% dos quadros de doença renal crônica são disparados pelo quadro de desequilíbrio glicêmico.

Em relação à hipertensão, há uma via de mão dupla. O aumento da pressão arterial lesa os vasos sanguíneos que nutrem os rins, tornando-os mais rígidos e menos eficientes.

E, quando o par não consegue filtrar o sangue direito, sais e líquidos podem continuar na corrente sanguínea e contribuir para a elevação da pressão. Ou seja, uma coisa leva à outra, num péssimo círculo vicioso. Por aqui, a hipertensão é a principal causa de doença renal crônica, responsável por 35% dos casos.

Também está associada a outras enfermidades que afetam o rim, como nefrites (inflamações nas diversas estruturas do órgão), litíase (a famosa formação de pedras nos rins) e doença policística (o surgimento de cistos ali).

Fora isso, existem doenças autoimunes, como o lúpus, que agridem as células desses órgãos e podem acarretar a insuficiência renal.

Para evitar o surgimento ou o agravamento da condição, não basta tomar 2 litros de água por dia. Por mais que isso ajude a evitar os cálculos, não blinda a dupla de outros apuros. Fora que essa é uma estimativa grosseira.

“O ideal é consultar o médico para fazer o cálculo correto de quanto líquido é necessário caso a caso, considerando inclusive a faixa etária”, orienta a nefrologista Milena Vasconcelos, da BP — A Beneficência Portuguesa de São Paulo.

A recomendação à população saudável pode variar de 20 a 40 mililitros por quilo de peso a depender da idade. Indivíduos que já enfrentam insuficiência renal progressiva são orientados a ter um consumo mais restrito, já que o corpo tem maior dificuldade de filtrá-los.

O assunto vai muito além dos copos, claro. Prezar uma dieta balanceada e evitar o cigarro, o álcool e outras drogas — incluindo medicamentos sem prescrição médica — são atitudes valiosas ao bem-estar dos rins (e do restante do organismo).

“Mas a principal medida de prevenção mesmo é controlar as doenças crônicas preexistentes, em especial a hipertensão e o diabetes, que causam dois terços de todos os episódios de doença renal crônica no país”, reforça Milena.

Ter os exames em dia é uma forma de ficar de olho na situação — antes que seja tarde demais.

Questão de saúde pública

Segundo documento publicado por uma equipe internacional de cientistas em um periódico do grupo Nature, a doença renal crônica deve se tornar a quinta principal causa de morte no mundo até 2040.

Hoje, o quadro de insuficiência progressiva dos rins é a única doença não transmissível que apresenta um aumento contínuo de fatalidades. O envelhecimento da população e a adoção de hábitos pouco saudáveis — que predispõem ao desenvolvimento de hipertensão, diabetes e obesidade — estão entre os principais motivos para o crescimento das complicações.

“A prevenção e o tratamento da doença depende, em boa medida, do estilo de vida do paciente”, afirma o médico Farid Samaan, membro da Coordenação Nacional de Nefrologia da Hapvida NotreDame Intermédica.

O especialista está à frente do Programa Sinta-se Bem, que acompanha mais de 4 mil pacientes credenciados com doença renal crônica de diferentes perfis: aqueles com alto risco de necessitar de diálise, os que já utilizam a terapia e ainda indivíduos que estão na fila do transplante renal.

O projeto busca acompanhar de perto a evolução dos casos, garantindo que os pacientes recebam apoio multiprofissional (com consultas ao nefrologista, nutricionista, psicólogo e assistente social) e realizem os exames necessários.

Segundo um levantamento da operadora de saúde com dados de 1,5 milhão de beneficiários, 20% dosaram a creatinina no sangue, mas menos de 1% fez exames específicos para avaliar a presença de proteínas na urina — fenômeno chamado de proteinúria, que está associado à perda da função renal.

Ou seja, muita gente está deixando de checar de maneira mais completa como vai a saúde dos rins e corre o risco de descobrir o problema em estágio avançado.

A doença renal começa a dar sinais pouco claros, como necessidade frequente de ir ao banheiro (inclusive à noite), mas, conforme avança, pode gerar fadiga, fraqueza, dores, perda de apetite, desnutrição e problemas neurológicos, como espasmos e diminuição da capacidade mental, além de maior suscetibilidade a infecções.

Para frear o aumento de novos casos e agravamentos, os autores do estudo da Nature Reviews Nephorology propuseram oito frentes de ação. A começar pela ampliação do acesso ao diagnóstico e tratamento, principalmente em países de baixa e média renda, como o Brasil, e a elaboração de melhores estratégias para alcançar esse horizonte.

Acesso ao saneamento básico

Para isso, as autoridades de saúde de cada nação devem conhecer bem sua população a fim de identificar quais fatores de risco são mais relevantes e devem estar na mira de campanhas de conscientização.

Tal esforço passa por reconhecer os determinantes sociais que afetam a saúde renal, como pobreza, moradia precária e falta de acesso a alimentos saudáveis e saneamento básico.

Segundo o artigo, comunidades marginalizadas são “desproporcionalmente” mais acometidas pela doença renal crônica. Também é crítico implementar modelos de testagem e rastreamento que sejam financeiramente acessíveis aos sistemas de saúde.

Equipes precisam ser treinadas para diagnosticar e acompanhar os casos — o que pressupõe um trabalho conjunto de médicos, enfermeiros, técnicos e outros profissionais na linha de frente. Sempre que é identificado um novo caso, é fundamental que a pessoa seja instruída sobre o que fazer para diminuir o ritmo da progressão da doença.

“A população precisa ser educada sobre as complicações que ocorrem devido à evolução do quadro”, ressalta Samaan, que também integra o Grupo de Planejamento da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.

Há um consenso de que, a partir dos 30 anos de idade, as pessoas deveriam começar a medir anualmente a creatinina no sangue e a fazer exames de urina. A depender das alterações apresentadas e de sintomas que o paciente venha a ter, outros exames podem ser solicitados, como ultrassom dos rins e testes para calcular a perda de proteínas no xixi.

Entre outras medidas listadas pelo time global de especialistas, estão ainda o aumento no investimento em pesquisas que investiguem a progressão da doença e explorem novos tratamentos, a maior cooperação internacional em prol da identificação e do cuidado e a maior participação da população na formulação de políticas de saúde que afetarão suas comunidades.

Afinal, a sociedade toda deveria se mobilizar para combater uma ameaça à sua integridade.

Tratamentos

Uma vez diagnosticada, a doença, em seus estágios iniciais, pode ser acompanhada e tratada com medicações nefroprotetoras — isto é, que agem para resguardar as estruturas dos rins.

No geral, são drogas que controlam a causa da insuficiência renal, como remédios para hipertensão, diabetes e obesidade. Com a chegada de novos tratamentos para o controle da glicose e do peso, até vantagens aos rins têm sido observadas.

A semaglutida, vendida sob o nome de Ozempic ou Wegovy, é um exemplo de uma nova leva de medicações com efeito proveitoso aos rins, segundo pesquisas recentes. A droga injetável é uma agonista do receptor de GLP-1, classe de medicações que regula com maior potência o diabetes e atua na perda de peso.

De acordo com uma revisão publicada no periódico The Lancet Diabetes & Endocrinology, o remédio reduz em 16% o risco de perda da função renal em quem convive com os problemas metabólicos para os quais é indicado. A conclusão veio à tona após a análise de 11 estudos sobre o tema, que envolveram mais de 85 mil pacientes.

Outra investigação, divulgada na Nature Medicine, mostrou que a semaglutida reduz em 52% a perda de proteína na urina, mostrando uma melhora na função renal de quem usa o medicamento.

Uma terceira pesquisa mostrou, ainda, que as injeções semanais podem trazer benefícios cardiovasculares a pacientes com insuficiência renal progressiva. Aqueles com doença renal crônica e obesidade tomando semaglutida tiveram um risco 33% menor de ter um evento cardiovascular ou de morrer por qualquer causa.

“Os resultados são animadores e podem melhorar o tratamento de pacientes diabéticos e obesos que vivem com doença renal, mas o acesso a essas drogas ainda é limitado”, avalia Moura Neto.

Para quem já perdeu a maior parte da função renal, medicamentos não dão conta do recado sozinhos. São necessárias as terapias renais substitutivas: diálise peritoneal, hemodiálise e transplante renal. As duas primeiras são intervenções que buscam realizar, de forma artificial, a filtragem do sangue.

Já a terceira consiste na adição de um terceiro rim ao paciente, proveniente de doador vivo ou falecido. De acordo com um trabalho que avaliou o acesso e a adesão ao tratamento da doença renal crônica em 165 países, essas técnicas não estão igualmente disponíveis ao redor do globo: 98% das nações afirmam oferecer diálise aos pacientes, mas apenas três quartos dispõem de soluções para garantir os transplantes.

“No Brasil, aproximadamente 160 mil pessoas dependem de diálise para manter a filtragem do sangue, sendo que 150 mil delas se valem de hemodiálise”, calcula o nefrologista Bruno Zawadzki, diretor médico da DaVita Tratamento Renal, principal rede voltada à terapia no país.

Atualmente, a opção por uma modalidade ou outra é definida entre o indivíduo e o médico, ponderando cada caso. À medida que os sistemas não dão mais conta de remover os resíduos do sangue, e se o paciente estiver em condições de saúde relativamente boas, ele pode entrar na fila por um novo rim.

“Atualmente, fazemos mais de 6 mil transplantes por ano em 21 unidades federativas”, relata o cirurgião Lúcio Requião, coordenador da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Ainda que o procedimento não seja realizado em todos os estados, há formas de transportar, com prioridade, pacientes desassistidos para centros de referência.

“São muitos os profissionais trabalhando para salvar essas vidas. Mas temos de garantir que todos tenham o acesso à prevenção e ao tratamento antes disso”, diz o médico. Para poupar os rins, é preciso começar a cuidar deles mais cedo.