O plenário do Senado aprovou, na noite de quarta-feira, 13, por 52 contra 16 votos, o substitutivo da senadora Leila Barros (PDT-DF) ao Projeto de Lei 182/2024, que regulamenta o mercado de crédito de carbono no Brasil. A proposta teve origem na Câmara, onde a votação foi concluída na última sessão plenária do ano passado. Por ter sofrido alterações, o projeto será novamente analisado pelos deputados e, se for aprovado, segue à sanção presidencial.
Nas duas últimas sessões do plenário, a bancada ruralista rompeu o acordo feito com a relatora e pediu o adiamento da votação. Inicialmente, ela estava prevista para a semana passada e, depois, foi transferida para a última terça. O impasse também coincidiu com o início da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-29), que começou na segunda e vai até dia 22/11, em Baku, no Azerbaijão. A expectativa do governo e de Barros era anunciar a aprovação da proposta ainda durante o evento internacional.
O projeto cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) e define um marco regulatório para a venda de créditos de carbono a partir de iniciativas de preservação ambiental e de enfrentamento às mudanças climáticas.
Ao defender o seu voto, a senadora Leila explicou que seu relatório substitutivo, elaborado após ouvir diversos deputados e senadores, mantém “mais de 80% do texto que veio da Câmara”. Ela reforçou que o projeto é uma importante ferramenta para combater as mudanças climáticas e ajudar o país a cumprir as metas de redução de emissão dos gases de efeito estufa, conforme o tratado internacional sobre o assunto, o Acordo de Paris.
“Foi um texto construído de forma coletiva e quero agradecer a todos que contribuíram. Esse projeto não é importante só para o Brasil, mas é histórico para a nossa legislatura”, afirmou a senadora.
O QUE É ISSO?
A comercialização de créditos de carbono permite que empresas, instituições ou pessoas compensem as emissões de gases de efeito estufa, resultantes de empreendimentos e atividades econômicas, pela aquisição de créditos gerados por projetos de redução dessas emissões ou da captura de carbono da atmosfera. Uma iniciativa para restringir os poluentes de uma indústria, o reflorestamento ou a conservação de uma área com vegetação nativa são exemplos desse tipo de projeto.
A principal fonte de emissões de gases de efeito estufa do Brasil é o desmatamento, com 46% do total, de acordo com o Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Seeg) do Observatório do Clima (OC). O setor agropecuário responde por 28%. Portanto, a produção rural representa cerca de 3/4 das emissões nacionais.
Por outro lado, a grande extensão da floresta amazônica no país torna-o um grande candidato a iniciativas e políticas de geração de créditos de carbono florestal. A criação de um mercado regulado de carbono no país está prevista desde 2009, quando foi criada a Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC), mas o assunto não foi regulado até hoje.
Senadores debatem substitutivo da relatora Leila Barros (PDT-DF) ao PL 182/2024, que regula o mercado de carbono no Brasil | Waldemir Barreto / Agência Senado
Senadores debatem substitutivo da relatora Leila Barros (PDT-DF) ao PL 182/2024, que regula o mercado de carbono no Brasil 📷 Waldemir Barreto / Agência Senado
INTERESSES DO AGRO
Com a perspectiva do governo usar a aprovação do projeto como um trunfo político na COP-29, senadores ruralistas tentaram impedir a votação até o último minuto, levantando polêmicas em itens já consensuados entre as duas casas legislativas.
Um dos principais pontos de tensão estava relacionado à participação de proprietários rurais nas receitas financeiras oriundas dos programas estaduais de projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD+). A intenção dos ruralistas era garantir a participação dos produtores rurais na divisão desses recursos, o que foi assegurado após acordo firmado com a relatora e integrantes da base do governo.
Outro ponto de impasse foi o mecanismo de redução de emissões do setor de combustíveis fósseis implementado por meio das chamadas Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs), que os ruralistas passaram a condenar como se fosse uma forma de tributação cumulativa para as empresas do setor. Nesse caso, a relatora não acatou as sugestões de alteração do texto.
AVANÇOS E DESAFIOS
No final da votação, na avaliação de organizações da sociedade civil que acompanham a pauta, em termos gerais o projeto aprovado pelo Senado acabou trazendo avanços consideráveis em relação à proposta que veio da Câmara.
Uma das mudanças positivas é a que permite que povos e comunidades tradicionais possam comunicar previamente aos órgãos gestores das suas terras sobre projetos de geração de créditos de carbono e, caso queiram, solicitar acompanhamento para o desenvolvimento do projeto.
De acordo com Ciro Brito, analista de políticas climáticas do Instituto Socioambiental (ISA), o substitutivo aprovado contempla algumas das principais preocupações das organizações da sociedade civil, de povos indígenas e comunidades tradicionais.
“A proposta aprovada no Senado garante algumas salvaguardas socioambientais de projetos e programas de crédito de carbono em territórios de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, como o direito de consulta prévia, livre e informada, a repartição justa e equitativa de benefícios e a inclusão de cláusula contratual que preveja indenização a comunidades por danos coletivos, materiais e imateriais”, avalia.
Segundo Brito, também foi importante a definição de que a consulta prévia, livre e informada deve ser custeada pelo interessado no desenvolvimento do projeto, que precisa ser acompanhado e supervisionado por órgãos do Poder Público, como a 6ª Câmara do Ministério Público Federal, no caso de povos indígenas e comunidades tradicionais, além da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do Ministério dos Povos Indígenas, no caso de povos indígenas em particular.
Brito também considera que houve avanços nas definições de atribuições da Comissão Nacional de REDD+. “A Conaredd+ terá participação consultiva no credenciamento de metodologias em relação às salvaguardas, deverá desenvolver um registro nacional de programas jurisdicionais de crédito de carbono e receber informação dos geradores de projetos de crédito de carbono em andamento ou de potenciais geradores de projetos”, informa.
“O colegiado ficará responsável por viabilizar a exclusão de imóvel de propriedade ou de usufruto de terceiros que deseje ter a respectiva área excluída da contabilidade de programas estatais de não mercado ou jurisdicionais de resultado de REDD+”, complementa.
Maurício Terena, coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), também aponta alguns avanços no substitutivo aprovado pelos senadores. “O texto aprovado incorpora a titularidade indígena sobre os créditos de carbono desenvolvidos em terras indígenas tradicionalmente ocupadas, o respeito à autonomia dos povos indígenas e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais localizados nas nossas terras”, explica.
“No que diz respeito às salvaguardas, há menção expressa à obrigatoriedade da consulta prévia, livre e informada nos termos da Convenção 169 da OIT, garantida a participação do Ministério dos Povos Indígenas, da Funai e do MPF, e, por fim, há atenção a percentuais mínimos de benefícios a serem revertidos para os povos indígenas”, avalia.
No entanto, ele chama atenção para alguns desafios da implementação da lei e critica a postura da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). “A mesma bancada ruralista que aprovou o marco temporal das demarcações, para avançar sobre nossas terras tradicionais, exclui a si própria, o maior setor emissor de gases do efeito estufa, das obrigações legais hoje aprovadas, tendo em vista que foram excluídos expressamente do PL nº 182/2024 a produção primária agropecuária e as emissões indiretas relacionadas a insumos e matérias-primas agropecuárias”, adverte. “Assim, a bancada ruralista conseguiu ‘auto anistiar’ os maiores poluidores, evitando sua inclusão nas medidas de mitigação climática”, critica.
REED
A coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima (OC), Suely Araújo chama atenção para a necessidade de garantir que as regras sejam efetivamente cumpridas nos programas de REDD+.
“O texto relatado pela senadora Leila Barros é mais claro do que o aprovado pela Câmara dos Deputados, mas ainda traz excessos nas regras sobre REDD+, relativas aos estoques de carbono florestal, que tendem a gerar dificuldades na operacionalização da futura lei. De forma geral, pode-se afirmar que se trata de uma lei, sem dúvida, relevante, que disciplina instrumentos que podem auxiliar a política climática, mas que o mercado de emissões não pode ser visto como uma panaceia”, alerta.
Araújo questiona se a futura legislação será suficiente diante da gravidade da emergência climática. “Em plena crise climática, com o aumento da frequência e da intensidade dos eventos extremos, instrumentos de mercado não resolverão problemas importantes nesse campo de políticas públicas. Espera-se que, no retorno à Câmara, o texto não seja alterado para pior. Por fim, deve ser enfatizado que precisa ser assegurada muita transparência na regulamentação e na implementação do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa, para que não se distorçam as finalidades”, ressalta.
Daniel Porcel, especialista em Mobilização e Diálogo do Talanoa, comenta que a aprovação do PL 182/2024 no mesmo dia em que o governo brasileiro anunciou a nova contribuição nacionalmente determinada (NDC, na sigla em inglês) na COP29 representa uma importante sinalização do Brasil em nível internacional.
“Não podíamos mais esperar, e corríamos o risco de não conseguir aprovar o SBCE na urgência que o atém. Embora o texto do Senado não seja o ideal, ou tampouco a melhor versão apresentada nesse longo e tortuoso processo de tramitação, é importante dizer que tratou de reduzir danos do texto advindo da Câmara dos Deputados. A última versão é a que se mostrou possível, frente a tantos tensionamentos que ameaçavam travar o processo. Portanto, o timing é fundamental. Trata-se de mais uma sinalização importante dada pelo Brasil no cenário internacional, no mesmo dia da submissão de sua NDC na COP 29 em Baku”, destaca.
Sobre as lacunas deixadas pelo texto, Porcel avalia que podem ser tratadas no processo de regulamentação da lei. “Precisaremos de atenção especial para a questão da governança para garantir a credibilidade de nosso SBCE, principalmente sobre o papel do Comitê Interministerial de Mudanças Climáticas e sua relação com o órgão gestor do sistema, ainda a ser definido.”
Como será o mercado de carbono, segundo o PL 2.148?
O mercado regulado de carbono busca induzir a descarbonização da economia e funciona por meio do mecanismo apelidado em inglês de “cap and trade”, ou seja, a limitação das emissões (“cap”) e o comércio de permissões de emissão gerados por quem reduzi-la além do limite estabelecido pela lei (“trade”).
O PL cria o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE) e define um marco regulatório para a venda de créditos de carbono a partir de iniciativas de preservação ambiental e de enfrentamento às mudanças climáticas.
Pela proposta, são abrangidos por essas novas regras tanto programas locais e jurisdicionais (estaduais) de Redução das Emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) como aqueles provenientes do Desmatamento e da Degradação Florestal, Conservação dos Estoques de Carbono Florestal, Manejo Sustentável de Florestas e Aumento de Estoques de Carbono Florestal, mecanismo conhecido como REDD+
O SBCE terá um órgão gestor, um órgão deliberativo e um comitê consultivo permanente. Outro problema apontado pelos ambientalistas é a ausência de participação da sociedade civil nesse órgão gestor.
Poderão participar do SBCE dois tipos de atores: empresas que emitirem mais de 10 mil toneladas de CO2 equivalente (tCO2e) por ano deverão reportar suas emissões obrigatoriamente, mas não terão meta de redução. Já emissores de mais de 25 mil tCO2e anuais na atmosfera serão obrigados a reduzir suas emissões.
Ainda segundo o PL, o Plano Nacional de Alocação vai definir as Cotas Brasileiras de Emissões (CBEs), que são a quantidade de CO2 equivalente a que cada operador do mercado terá direito. Elas podem ser compradas por aqueles que não atingirem suas metas de emissão.
Além das CBEs, há um outro ativo comercializável: o Certificado de Redução ou Remoção Verificada de Emissões (CRVE). Ele será gerado quando houver redução nas emissões e também poderá ser comercializado para que países cumpram suas metas no tratado internacional sobre mudanças climáticas, o Acordo de Paris, ou seja, em transações internacionais. Cada cota ou CRVE representa 1 tonelada de CO2 equivalente.
*Com informações de Oswaldo Braga de Souza
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