Revisão da vida toda’: segurança jurídica ou terrorismo fiscal?

Existe uma grande similitude quando advogamos na seara criminal e quando a atuação se dá contra a administração pública. Em ambos os casos, não se pode perder de vista que o Estado, ao atuar como parte, via Ministério Público ou via Advocacia Geral da União (AGU), deve receber o mesmíssimo tratamento jurídico dispensado aos particulares que figuram na outra ponta. Trata-se de uma decorrência natural do princípio da igualdade, que deve ser sempre levada em consideração pelos julgadores.

O conhecido caso previdenciário da “revisão da vida toda” é emblemático. A discussão central é sobre a possibilidade de os segurados anteriores a 1994 optarem pela regra geral constante do artigo 29, incisos I e II, da Lei nº 8.213/1991 ou se, uma vez enquadrados na regra de transição do artigo 3º da Lei nº 9.876/1999, se submeterem obrigatoriamente a ela. Em outras palavras, os segurados mais antigos podem ou não optar por uma aposentadoria que leva em consideração as contribuições da “vida toda”, quando essas contribuições lhes proporcionam um benefício mais vantajoso?

Os princípios que regem o direito previdenciário fundamentam o pleito dos segurados. O princípio do melhor benefício, por exemplo, deveria afastar qualquer dúvida acerca do direito de opção pela regra geral dos incisos I e II do artigo 29 da Lei nº 8.213/1991. Quando se analisa o contexto em que foi editada a regra de transição da Lei nº 9.876/1999, chega-se à mesma conclusão: ela foi pensada para melhorar benefícios; não para prejudicar os aposentados vinculados ao INSS, que já contam com proventos bastante limitados.

Até o início de 2024, o cenário era favorável aos menos favorecidos. O Superior Tribunal de Justiça pacificou seu entendimento em julgamento de recurso repetitivo e o Supremo Tribunal Federal chancelou esse mesmo posicionamento sob o rito da repercussão geral (Tema 1102). Os segurados que há anos litigavam no Poder Judiciário estavam certos de que seus direitos estariam preservados.

Contudo, a apresentação de alguns números pela AGU trouxe relevantes alterações no quadro. A advocacia pública, mesmo sem embasamento, insiste que o impacto do julgamento favorável aos aposentados alcançaria quase R$ 500 bilhões em desfavor do erário. Chegou ao ponto de inserir essa conta na Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2024. Diante de um quadro tão alarmante, a Suprema Corte viu-se instada a revisitar um posicionamento consolidado há anos e passou a questionar o direito à revisão da vida toda.

Vale lembrar que a AGU atua como parte e, portanto, os cálculos por ela apresentados não podem ser encarados como verdade absoluta; podem e devem ser contraditados. O próprio ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, assumiu que a estimativa de impacto financeiro feita pelo governo federal, de cerca de R$ 500 bilhões, representava mero “chutômetro”. O Instituto de Estudos Previdenciários, o Ieprev, por outro lado, apresentou um detalhado parecer econômico, com base em dados previdenciários oficiais e estudos demográficos. Estimou o impacto financeiro em cerca de R$ 3 bilhões. A diferença é muito substancial.

Retomando as reflexões iniciais, vale lembrar: ainda que o direito seja naturalmente influenciado por fatores morais, econômicos e políticos, entre outros, ele precisa garantir sua autonomia. Assim como o direito criminal não pode se curvar a clamores populares, por exemplo, o direito previdenciário não pode ficar inteiramente à mercê de cálculos de impactos orçamentários, notadamente quando estes sequer são críveis. O direito precisa, isso sim, garantir segurança jurídica e estabilizar as expectativas dos jurisdicionados, o que precisa ser feito agora pelo Supremo Tribunal Federal.

A “revisão da vida toda” precisa ser reavaliada. Os princípios jurídicos devem se sobrepor ao terrorismo fiscal. Os argumentos das partes devem ser analisados igualmente. E o princípio da segurança jurídica precisa retomar o seu lugar de alicerce do ordenamento jurídico do País.

A Suprema Corte tem mecanismos para, ao mesmo tempo, preservar o direito dos segurados e minimizar o impacto da mudança de jurisprudência tanto para os aposentados quanto para o erário público, como já o fez em outras oportunidades. Uma solução conciliatória e atenta à segurança jurídica é plenamente viável.

 

Aumento do valor do benefício

Para os segurados que há anos lutam pelos seus direitos no Poder Judiciário, a revisão da vida toda pode ensejar um aumento do valor de benefício que fica entre 3,1% e 13,6%, o que representa um custo entre R$ 1,5 bilhões e R$ 4,5 bilhões em 10 anos, montante muito inferior ao veiculado pela AGU. São apenas 100 mil famílias que podem ser contempladas e, na grande maioria dos casos, estamos falando de pessoas que ganham pouco mais de um salário mínimo por mês.

Ou seja, ao mesmo tempo em que o impacto orçamentário não é tão relevante, os resultados no campo social são muito substanciais.

Nesse cenário, os efeitos do posicionamento adotado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal podem e devem ser modulados, de modo a garantir os direitos daqueles que propuseram suas demandas durante o período em que a jurisprudência garantia a revisão da vida toda.

É uma solução que não tem nada de ineditismo; tem previsão no artigo 927 do Código de Processo Civil e foi recentemente adotada pela Suprema Corte no julgamento dos Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 1.072.485.

Na ocasião, o tribunal entendeu pela possibilidade de cobrança de contribuição previdenciária das empresas sobre o terço de férias pago aos trabalhadores, em contrariedade ao posicionamento anteriormente adotado pela jurisprudência. Como houve uma relevante mudança de entendimento, os efeitos do novo posicionamento foram modulados, de modo que o pagamento passou a ser exigido apenas a partir de 2020, quando apreciado o mérito do recurso extraordinário.

Na apreciação dos embargos de declaração, buscou-se a preservação do princípio constitucional da segurança jurídica, protegido pelo artigo 927 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.

Essa postura conciliatória da Corte Suprema deve prevalecer também nas próximas discussões sobre a “revisão da vida toda”. É preciso preservar a segurança jurídica e o interesse de milhares de segurados que terão seus benefícios previdenciários corrigidos, com melhores condições de vida na aposentadoria, sem impacto tão relevantes aos cofres públicos.

A história da “vida toda” precisa ser recontada. E precisamos nos sensibilizar para o fato de que o caso impacta 100 mil famílias que se sustentam com benefícios muito limitados, próximos ao salário mínimo, ao passo que o montante em discussão nem de longe afeta os cofres públicos de modo impactante. A modulação de efeitos é uma questão de justiça, de segurança jurídica e de dignidade para aqueles que lutam há anos pelo reconhecimento dos seus direitos.

Antônio Carlos de Almeida Castro – Kakay

é advogado criminalista e sócio fundador do Escritório Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados Associados.

 

Marcelo Turbay Freiria

é sócio do escritório Almeida Castro, Castro e Turbay Advogados Associados, mestre em Direito pelo IDP, pós-graduado pela Universidade de Coimbra, professor da Universidade de Brasilia (UnB) e presidente da Comissão de Investigação Defensiva do Conselho Federal da OAB.

Bruno Fischgold

é advogado, sócio fundador do Escritório Fischgold Benevides Advogados, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, especialista em Direito Administrativo, membro efetivo do Instituto Nacional da Contratação Pública e Autor do livro Direito Administrativo e Democracia – a inconstitucionalidade do princípio da supremacia do interesse público.

Por Antônio Carlos de Almeida Castro – Kakay

Marcelo Turbay Freiria

Bruno Fischgold

Fonte Conjur