Até 2050, estima-se que metade da população mundial terá ao menos uma alergia.
Uma das leis da natureza é a da ação e reação. No organismo de um alérgico, porém, um estímulo aparentemente insignificante pode detonar uma bomba imunológica. Na prática é assim: basta um descuido com a faxina em casa ou com a alimentação na rua para surgir uma coceira aqui, um espirro ali, uma mancha vermelha acolá…
Há quem fique com nariz e olhos irritados ao inalar a poeira e os ácaros da estante, quem fique todo empolado ao tomar um copo de leite ou comer um camarão e quem tenha que correr até o pronto-socorro depois de uma picada de formiga ou abelha.
Em comum, todas essas são ações e reações típicas de alergias. Um problema de saúde pública que não para de crescer ano após ano e, com as mudanças ambientais, poderá se tornar ainda mais árduo num futuro não tão distante.
A Organização Mundial de Alergia (WAO, na sigla em inglês) calcula que até quatro em cada dez pessoas no planeta hoje convivem com alguma forma da condição (rinite, asma, dermatite…). Mas a coisa deve piorar: a Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que, seguindo o ritmo atual, metade da população global estará nesse barco até 2050.
Trabalho não falta para os médicos alergistas. Segundo um relatório do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), a busca pela especialidade aumentou 42% entre 2019 e 2022. Vivemos uma epidemia com manifestações cada vez mais precoces, persistentes e imprevisíveis.
“Casos de rinite, que já eram bastante comuns, têm se multiplicado, principalmente em períodos de mudança de tempo brusca e clima seco”, relata Maria Letícia Chavarria, coordenadora do Departamento Científico de Rinite da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai). E não é só o sistema respiratório que padece: o aparelho digestivo é outra vítima das respostas exacerbadas.
“Trabalho com alergia alimentar há 25 anos, e noto que não apenas o número de novos casos vem crescendo como também é maior a variedade de alimentos que despertam as reações e a heterogeneidade das manifestações”, diz a alergista Renata Cocco, professora da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, em São Paulo.
As alergias surgem quando o sistema imune identifica um corpo estranho como uma ameaça à saúde, ainda que ele não seja. Nessa situação, mobilizam-se células de defesa e anticorpos (as imunoglobulinas E, ou IgE) contra o invasor.
Acontece que esse estranho no ninho — que não é um patógeno ou inimigo clássico — não seria necessariamente um problema. Mesmo assim, a imunidade implica com ele. E quem sofre as consequências? A multidão dos alérgicos.
Em busca de respostas
Os cientistas têm se dedicado à compreensão das alergias há pelo menos um século. Desde então, foram descobertos os principais mecanismos que desencadeiam as reações, mas ainda está cercado de mistérios o porquê de essas respostas imunológicas acontecerem. Tudo leva a crer que há uma mistura de fatores genéticos, comportamentais e ambientais por trás. E são eles que justificariam também a explosão recente nos diagnósticos.
Em 1989, o professor britânico David Strachan deu uma contribuição valiosa para o debate. Ao estudar a relação entre rinite alérgica, higiene e composição familiar no Reino Unido, ele concluiu que aqueles que tinham maior convívio com irmãos mais velhos e mais infecções na infância eram menos propensos a desenvolver alergias respiratórias.
Para o pesquisador, as infecções estariam treinando as células de defesa, que aprenderiam a não reagir a qualquer besteira. Com isso, a exposição precoce reduziria o risco de alergias e doenças autoimunes. O raciocínio ficou conhecido como “hipótese da higiene”, uma ideia que, claro, não prega o abandono das práticas recomendadas para prevenção de doenças contagiosas.
“A ideia é que, em ambientes bem cuidados, o sistema imunológico não teria tantos micróbios a combater, ficando mais suscetível a desatar reações alérgicas”, explica o médico Fábio Chigres Kuschnir, presidente da Asbai. Faz sentido! Mas, como os especialistas imaginavam, a coisa não é tão simples assim.
Contato com a natureza
No fim da década de 1990, outro estudo ganhou repercussão ao conectar a biodiversidade do local onde se vive a mudanças imunológicas. Os cientistas traçaram um perfil da população da Carélia, uma extensa região no norte da Europa dividida entre a Rússia e a Finlândia.
“Ao comparar crianças e adultos dos dois lados da fronteira, descobriu-se que os finlandeses, que moravam em uma zona mais urbanizada, tinham bem mais doenças alérgicas do que os russos, que viviam na zona rural”, conta a pneumologista Lilian Caetano, coordenadora da Comissão Científica de Asma da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT).
Lá na Carélia, casos de rinite afetavam apenas 2% da molecada russa, enquanto 27% dos garotos finlandeses viviam com o nariz coçando e escorrendo. O que os estudiosos concluíram, ao checar essas e outras diferenças, foi que, na Finlândia, a diminuição da exposição à natureza, as mudanças na dieta e o sedentarismo reduziram o contato das pessoas com micro-organismos essenciais para a manutenção da saúde e a prevenção de alergias.
A conclusão dos europeus, conhecida como “hipótese da biodiversidade”, foi tão bem recepcionada que virou até política pública. Entre 2008 e 2018, o governo finlandês implementou um programa de combate a alergias que focava na capacitação de profissionais de saúde para o diagnóstico e o aconselhamento da população sobre a importância de criar resistência a alérgenos. Os resultados foram excelentes. Pacientes com asma passaram a apresentar menos sintomas e o tempo de hospitalização pela doença caiu pela metade. As alergias ocupacionais (relacionadas ao trabalho) diminuíram em 45%. Até os gastos nacionais diretos e indiretos com o problema tiveram uma redução de 30%, comparados ao registrado antes do início do programa.
“Foi uma iniciativa inspiradora, de um país que passou a encarar as alergias como um problema de saúde pública”, exalta Kuschnir. Se pensarmos no número de vítimas entre os brasileiros — e no impacto dos sintomas na rotina e produtividade —, seria uma boa importar a iniciativa escandinava.
Um trabalho que passa inclusive por conter os altos níveis de poluição — tanto nas cidades, acossadas pela fumaça dos carros e das indústrias, quanto nas regiões mais afastadas e ameaçadas pelas queimas florestais. Estudos recentes ligam os poluentes no ar a alterações químicas em alérgenos, dificultando o diagnóstico e tratamento. As mudanças climáticas, por sua vez, abrem maiores janelas de tempo seco, piorando condições como rinite e dermatite atópica.
Da alimentação à genética
Até a alimentação tem um papel na modulação da imunidade — e desde o início da vida. “Há pouco menos de uma década, acreditava-se que a introdução precoce de alimentos potencialmente alergênicos na dieta dos bebês favorecia doenças alérgicas. Porém, novas pesquisas vieram mostrar que isso pode ser um fator protetor, e não desencadeante”, expõe Herberto José Chong Neto, presidente do Departamento Científico de Alergias da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Levantamentos indicam que a amamentação (além do parto normal) e uma dieta mais variada e natural desde a infância ajudam a compor uma microbiota intestinal equilibrada, o que irá se refletir nos domínios imunológicos.
Realmente, existe uma série de fatores que somam peças ao quebra-cabeça da alergia, mas o desenho só se completa com uma predisposição genética. Pois é, se você é alérgico, há uma chance bem maior de ter herdado essa tendência e de passá-la a seus filhos. Mas, veja bem, não se trata de sentença. As experiências de vida podem ativar ou desativar a expressão de genes — inclusive alguns ligados à sensibilidade do sistema imune.
A interface entre o DNA e o ambiente é o foco de interesse de uma área chamada epigenética, que nos auxilia a entender como alterações na expressão dos genes podem dar as caras ao longo da vida (incluindo a intrauterina) e se perpetuar nas próximas gerações.
Para Renata Cocco, boa parte das respostas sobre o boom das alergias deve residir aqui. Mas tão importante quanto decifrar as transformações imunológicas é investigar quem são e o que fazem os alérgenos.
Diagnóstico
Essa é a missão da bióloga Keity Souza Santos, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), que se dedica a identificar os “estranhos no ninho” tipicamente brasileiros e oportunidades para melhorar o tratamento da condição.
“Muita gente pensa que não há casos de alergia a polén no país. Mas, no Nordeste, por exemplo, vemos a reação ao contato com o pólen do cajueiro”, ilustra a pesquisadora. “É necessário que aprofundemos nosso conhecimento sobre esses fatores para aprimorar o diagnóstico e o manejo do problema.”
Para flagrar uma reação alérgica, alguns exames podem ser solicitados, a depender da idade e da extensão dos danos, como o teste de puntura e o de contato, além do de provocação oral. Neles, o paciente entra diretamente em contato com os alérgenos. Por isso, os procedimentos devem ser conduzidos em ambientes controlados, com alergistas e outros profissionais preparados para socorrer o paciente em caso de uma reação grave.
“Diante de um risco maior, os testes são feitos em hospital, com o acompanhamento de uma equipe composta de outras especialidades médicas e enfermeiros”, esclarece a imunologista Helena Fleck Velasco, do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre.
A alergia também pode ser investigada pelo sangue, tirando uma amostra em laboratório para reagir com os alérgenos. Cada teste tem as suas especificidades, mas todos costumam avaliar o aumento do IgE, que é a única reação imunológica diferencial de uma alergia. E preste atenção na sigla do anticorpo… “Exames de IgG [imunoglobulina G] têm surgido no mercado com um alto preço e muitas promessas, mas não ajudam a identificar alergias”, avisa Renata.
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Conheças as principais alergias alimentares e suas formas de tratamento (Floortje/Getty Images | Ilustração: Daniel Almeida/Veja Saúde)
Tratamentos
Com o diagnóstico em mãos, o médico pode traçar, junto ao paciente, um plano de ação para deter e remediar as crises. A linha de frente no tratamento são os anti-histamínicos. Comprimidos e pomadas com esses princípios ativos combatem a histamina, composto inflamatório liberado por células imunes aliadas aos anticorpos IgE e responsável pelas manifestações peculiares da alergia.
Prescritos para apaziguar coriza, urticária, diarreia e outros sintomas, os anti-histamínicos não estão sozinhos na jogada, sobretudo quando o caso não é tão leve assim. Outros remédios podem integrar o esquadrão de socorro, como corticosteroides, broncodilatadores (em casos de asma) e imunossupressores (presentes no tratamento da dermatite atópica, por exemplo).
Para alguns pacientes, uma saída, ainda que não seja curativa, são as vacinas terapêuticas, que buscam dessensibilizar o organismo diante do alérgeno. E, mais recentemente, despontaram para o controle dos casos mais severos os medicamentos imunobiológicos.
“Eles têm proporcionado bons resultados a pessoas que não tinham um tratamento satisfatório antes. No entanto, são opções ainda caras e nem sempre acessíveis, custando alguns milhares de reais por mês”, afirma Adriana Pitchon, imunologista do Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte.
Perigo à espreita
No Brasil, outro tratamento pouco acessível é o da anafilaxia, a forma mais grave de uma reação alérgica. “A primeira imagem que vem na nossa cabeça é a da asfixia pelo inchaço e fechamento da glote, mas a anafilaxia envolve também outras reações potencialmente fatais, como alterações nos batimentos cardíacos”, alerta a médica. A única forma de conter essa escalada é injetar uma dose de adrenalina.
Só que, no país, ela não é vendida em farmácias e só pode ser administrada por profissionais da saúde, o que deixa ao redor de 2% da população mais vulnerável diante de uma crise séria, que pode pintar a qualquer momento. É um cenário diferente do de outros países, onde os pacientes podem adquirir canetas autoinjetáveis para carregar consigo em caso de emergência. Por aqui, um projeto de lei quer mudar essa realidade e propõe que o fármaco seja distribuído pelo SUS.
Sim, há muito a avançar na compreensão e no controle das alergias. Mas também há bastante gente interessada em desvendar seus enigmas e compartilhar informações que podem salvar ou melhorar vidas.
Após perder o pai para uma anafilaxia desencadeada por picada de abelha, a antropóloga médica americana Theresa MacPhail mergulhou no tema, entrevistando dezenas de cientistas e cotejando centenas de pesquisas, para escrever Alérgicos: Como Nosso Sistema Imunológico Reage a um Mundo em Transformação, recém-lançado no Brasil pela Editora BestSeller (clique aqui para comprar).
Para ela, só iremos contornar e superar essa epidemia com ciência. “Minha esperança é que avancemos o suficiente para sermos capazes de dar um melhor suporte à nossa imunidade à medida que ela se desenvolve nesse novo mundo que criamos”, diz a autora. Ela, eu e outros bilhões de alérgicos torcemos por isso.
Por Texto: Larissa Beani | Design: Laura Luduvig | Foto: Getty Images | Ilustração: Daniel Almeida
Veja Saúde